O cinema sempre foi um espelho das tensões sociais, das conquistas políticas e dos desejos mais íntimos de cada época. Quando falamos de representatividade LGBT, esse espelho ganha contornos ainda mais importantes: a sétima arte não apenas reflete, mas também ajuda a construir narrativas que legitimam existências e abrem espaço para novos olhares. Embora produções de Hollywood como Brokeback Mountain e Call Me by Your Name tenham alcançado projeção mundial, o panorama internacional é muito mais vasto e diverso, abrigando histórias que atravessam fronteiras, línguas e realidades culturais. Nesta reportagem, destacamos cinco filmes LGBT que merecem atenção, vindos de diferentes partes do mundo, alguns pouco conhecidos do grande público, mas todos fundamentais para compreender o poder transformador da arte.
1. 120 Batimentos por Minuto (França, 2017)
Dirigido por Robin Campillo, 120 Batimentos por Minuto é um mergulho visceral na militância do grupo ACT UP em Paris, durante os anos 1990, quando a epidemia de HIV/AIDS ceifava milhares de vidas em meio ao silêncio e à negligência de governos e laboratórios farmacêuticos. O título faz referência tanto ao ritmo acelerado do coração quanto ao BPM da música eletrônica que embalava as festas da juventude.
O filme acompanha de perto as reuniões tensas do movimento, as ações diretas de protesto e, sobretudo, a vida íntima dos militantes. Entre eles, destaca-se a relação amorosa entre Sean e Nathan, que nasce em meio à luta coletiva e se intensifica à medida que a saúde de Sean declina. A força da narrativa está em equilibrar a crueza política com a delicadeza do afeto.
A produção foi aclamada em Cannes, levando o Grande Prêmio do Júri, e consolidou-se como uma das representações mais impactantes da memória da AIDS no cinema. Mais do que revisitar o passado, o longa provoca reflexões urgentes sobre responsabilidade social, ativismo e solidariedade dentro da comunidade LGBT.
2. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Brasil, 2014)
Representante brasileiro que conquistou o mundo, o filme de Daniel Ribeiro é uma obra de delicadeza e sensibilidade raras. A trama gira em torno de Leonardo, um adolescente cego em busca de independência, e da amizade transformadora que surge quando ele conhece Gabriel, o novo aluno da escola.
O enredo parte do típico coming of age, mas ganha força ao articular múltiplas camadas: a deficiência visual, a relação com os pais, o bullying escolar e o despertar da sexualidade. Sem recorrer a estereótipos ou melodramas excessivos, Ribeiro constrói uma história de amor juvenil que se aproxima da naturalidade com que deveria ser contada em qualquer cultura.
O longa foi ovacionado no Festival de Berlim e acumulou prêmios em diversos países. Mais do que um filme sobre homossexualidade, é uma narrativa sobre crescer, amar e enfrentar o desconhecido. O sucesso internacional também ajudou a reforçar a importância de o Brasil exportar narrativas LGBT positivas em tempos de retrocessos sociais e políticos.
3. O Segredo de Brokeback Mountain (EUA, 2005)
Embora seja um título já consagrado, impossível deixar de incluí-lo neste panorama por sua relevância histórica. Dirigido por Ang Lee, Brokeback Mountain levou o amor entre dois caubóis para o centro de Hollywood, rompendo barreiras de representação em um gênero tradicionalmente associado à masculinidade hegemônica.
A história acompanha Ennis e Jack, que desenvolvem uma relação apaixonada e dolorosa após trabalharem juntos em uma região isolada. O que começa como uma aproximação inesperada se transforma em um amor proibido, atravessado pelo peso da repressão social e da heteronormatividade violenta dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos rurais.
O filme não apenas emocionou plateias do mundo inteiro, mas também abriu debates públicos sobre masculinidade, repressão sexual e a invisibilidade de amores fora do padrão. Ganhou três Oscars, incluindo o de Melhor Direção, e permanece como marco da cultura popular. Ainda hoje, quase duas décadas depois, sua força reside em mostrar que o silêncio imposto a sentimentos legítimos pode ser tão devastador quanto qualquer violência explícita.
4. The Handmaiden (A Criada, Coreia do Sul, 2016)
A Coreia do Sul tornou-se, nos últimos anos, uma potência cinematográfica reconhecida mundialmente, e The Handmaiden, dirigido por Park Chan-wook, é uma prova de como narrativas LGBT podem ser exploradas em produções sofisticadas e de alcance global. Inspirado no romance britânico Fingersmith, de Sarah Waters, o filme transpõe a trama vitoriana para a Coreia ocupada pelo Japão nos anos 1930.
A história acompanha Sook-hee, uma jovem contratada como criada de Lady Hideko, herdeira de uma grande fortuna. O que começa como um plano de conspiração e engano evolui para uma relação intensa entre patroa e criada, marcada por erotismo, cumplicidade e desejo de libertação.
Esteticamente exuberante, o filme combina intriga, sensualidade e crítica social, desafiando convenções de gênero e poder. Recebido com entusiasmo em Cannes, The Handmaiden não só ampliou a visibilidade de narrativas lésbicas em produções asiáticas de alto orçamento, como também mostrou que o amor entre mulheres pode ser representado de forma multifacetada — ora delicada, ora brutal — sem se reduzir a fetichização ou marginalização.
5. Portrait de la Jeune Fille en Feu (Retrato de uma Jovem em Chamas, França, 2019)
Fechando a lista, outra produção francesa que se tornou referência contemporânea. Dirigido por Céline Sciamma, Retrato de uma Jovem em Chamas é uma história de amor entre Marianne, uma pintora, e Héloïse, uma jovem aristocrata destinada a um casamento arranjado. Ambientado no século XVIII, o filme retrata a tensão entre liberdade e obrigação, desejo e repressão, arte e efemeridade.
O ritmo contemplativo, os silêncios e os olhares substituem os diálogos excessivos, criando uma atmosfera de intensidade contida. Cada cena é composta como um quadro, e o fogo do título simboliza tanto a chama da paixão quanto a inevitabilidade da perda.
A produção recebeu o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes e foi aclamada pela crítica mundial. Para o público LGBT, representa uma das mais belas histórias de amor lésbico do cinema, abordando a visibilidade feminina sem mediações masculinas, com sensibilidade poética e poder narrativo.
Um cinema plural e necessário
O conjunto desses cinco filmes revela não apenas histórias de amor ou desejo, mas diferentes formas de lidar com identidade, memória e resistência. Do ativismo de 120 Batimentos por Minuto à delicadeza adolescente de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, passando pela repressão rural de Brokeback Mountain, pela sofisticação erótica de The Handmaiden e pela poesia trágica de Retrato de uma Jovem em Chamas, percebemos que o cinema LGBT não se limita a um nicho, mas compõe um mosaico cultural de alcance universal.
Vale lembrar que a visibilidade conquistada no cinema ainda encontra barreiras. Muitos desses filmes tiveram distribuição limitada, especialmente fora da Europa e da América do Norte, e a censura permanece uma realidade em diversos países. No entanto, o impacto de cada obra ultrapassa fronteiras, fortalecendo a representatividade e oferecendo espelhos para pessoas que, durante muito tempo, não se viam na tela.
O poder do cinema está em criar empatia e ampliar horizontes. Para casais LGBT, jovens em busca de referências ou mesmo espectadores que desejam compreender realidades diversas, esses filmes oferecem mais do que entretenimento: são convites à reflexão sobre liberdade, amor e a necessidade de resistir a narrativas que insistem em marginalizar diferenças.
O futuro do cinema LGBT parece promissor. Com diretoras como Céline Sciamma, cineastas asiáticos ousando abordar a temática com novos recursos visuais e a crescente produção latino-americana, o leque de histórias só tende a crescer. A pergunta não é mais se haverá representatividade, mas como ela será construída: plural, crítica, emocionante e capaz de dialogar com todas as plateias.
Em um mundo em que a intolerância ainda insiste em marcar presença, sentar-se diante da tela para assistir a uma história de amor LGBT é também um ato político. Cada um desses cinco filmes, em sua singularidade, reforça a ideia de que amar é universal, e que a arte tem a missão de não deixar ninguém invisível.