O dia em que a Parada gay esqueceu o motivo de existir

Eu estava na última Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo, na altura do metrô Trianon, e presenciei algo que me deixou particularmente triste. Aquele dia tinha tudo para ser festa: cores vibrando, música alta, corpos dançando e a sensação de liberdade que só quem já foi sabe como é. Estávamos todos ali celebrando o direito de existir, de amar, de ocupar as ruas que tantas vezes nos negaram. Mas, em meio àquela multidão, uma cena mudou completamente meu olhar sobre o que estava acontecendo.

Um rapaz, que devia ter pouco mais de vinte anos, teve o celular furtado. Foi rápido, aquele tipo de furto que acontece num segundo. Ele percebeu, reagiu por instinto e tentou puxar o aparelho de volta da mão do ladrão. Só que, em vez de recuperar o que era dele, foi surpreendido por algo muito mais violento. Em questão de segundos, uns dez homens surgiram. Um deles partiu para cima com uma voadora no peito do rapaz, e os outros começaram a chutá-lo quando ele caiu no chão.

A cena foi brutal. O barulho dos gritos se misturava à batida da música que continuava vinda do trio elétrico. O público ao redor, assustado, abriu um círculo em volta. Mas ninguém se moveu para ajudar. Ninguém interveio. Era como se todos estivessem assistindo a um espetáculo paralelo, paralisados entre a curiosidade e o medo. Olhei para o trio elétrico, esperando algum gesto, uma pausa, qualquer coisa que reconhecesse o absurdo que estava acontecendo. Mas não. A música não parou. Os DJs seguiram tocando como se nada estivesse acontecendo.

Alguns minutos depois, o rapaz conseguiu se levantar. Estava machucado, andando devagar, tentando sair daquele círculo de indiferença. Passou pelo meio da multidão como um fantasma: todo mundo via, mas ninguém realmente enxergava. Pouco tempo depois, o círculo se fechou novamente. A batida dos leques voltou a marcar o ritmo. O carnaval patrocinado por grandes marcas continuou, impecável, sem arranhar o roteiro festivo.

E foi nesse instante que eu me perguntei: será que a gente esqueceu qual é a razão da Parada?

Esse questionamento ficou ecoando na minha cabeça pelo resto do dia. A Parada sempre foi, para mim, um espaço de luta. Uma manifestação política, antes de qualquer coisa. Claro que é festa, claro que é celebração, mas sempre entendi que a música e as cores estavam a serviço de algo maior: o direito de existir sem medo, o direito de ocupar o espaço público, de dizer para a sociedade inteira que nós não somos invisíveis. Só que, diante daquela cena, vi algo completamente diferente.

Olhei em volta e vi tantos homens fortes, grandes, cheios de presença. Gente que, teoricamente, deveria formar uma rede de proteção mútua. Mas não. Milhares de corpos, milhares de vozes, e ninguém se levantou para impedir que dez homens espancassem um rapaz indefeso. Que movimento é esse em que heterossexuais conseguem entrar, agredir e roubar um gay em plena Parada — e ninguém faz nada?

Não estou dizendo que é fácil intervir numa cena de violência. O medo é real, a possibilidade de se machucar é concreta. Mas o que me incomoda é o silêncio coletivo. É a ausência de qualquer reação. Nem um gesto simbólico, nem a música parando para chamar a atenção, nem um grito em uníssono para intimidar os agressores. Nada. Só o silêncio disfarçado pela batida eletrônica e pelo barulho de leques batendo no ar.

Naquele momento, percebi como o movimento pode ser cooptado. Quando a Parada vira apenas uma festa patrocinada, será que não estamos correndo o risco de esquecer por que ela existe? As grandes marcas sobem nos trios, distribuem brindes coloridos, estampam seus logos em bandeiras e cartazes. Mas quando a violência acontece ali, diante de todos, ninguém move um dedo. É como se estivéssemos participando de um carnaval comercial, e não de um ato político.

Não consigo deixar de pensar que esse episódio é um retrato cruel do que está acontecendo com a militância LGBT+. Aos poucos, estamos trocando a luta pela estética, o enfrentamento pela performance, a coragem pelo consumo. É claro que celebrar é importante. É claro que dançar é político quando historicamente tentaram nos proibir de existir. Mas o que eu vi não foi celebração. Foi anestesia. Foi indiferença.

Enquanto o rapaz se levantava sozinho, machucado, pensei no tanto de histórias como a dele que ficam invisíveis. Quem volta para casa com o corpo marcado e a alma ferida raramente aparece nas fotos oficiais da Parada. Essas imagens não cabem nos comerciais de cerveja ou nas campanhas de banco que estampam arco-íris em junho. O mercado vende a ideia de orgulho, mas só enquanto ela gera lucro. Quando se trata de violência real, de dor real, não há patrocínio que dê conta.

E talvez a parte mais dura de tudo isso seja reconhecer que nós mesmos, enquanto comunidade, também falhamos. Porque se a Parada é nossa, por que ninguém reagiu? Por que normalizamos que um crime desses acontecesse no coração do nosso próprio ato político? Será que nos tornamos espectadores da nossa própria luta?

Eu não tenho respostas fáceis. Mas saí de lá com a sensação de que precisamos repensar. Não adianta ocuparmos a Avenida Paulista com milhões de corpos se, no fundo, estamos sozinhos quando a violência acontece. Não adianta gritarmos palavras de ordem se, na prática, não nos apoiamos nos momentos em que mais precisamos uns dos outros.

A imagem que ficou gravada na minha memória não foi a das bandeiras tremulando, nem dos trios elétricos iluminados. Foi a de um jovem de vinte e poucos anos, saindo mancando, machucado, em silêncio, depois de ter sido agredido diante de milhares de pessoas. E ninguém o ajudou.

Quando penso nisso, me pergunto se não estamos vivendo uma contradição. Lutamos contra a invisibilidade, mas, na prática, acabamos reproduzindo ela. Porque o silêncio diante da violência também é uma forma de invisibilizar. O rapaz existiu, foi espancado, sofreu — e a Parada seguiu como se nada tivesse acontecido.

Queria que esse relato fosse diferente. Queria dizer que alguém interveio, que a multidão se uniu, que o trio parou a música para denunciar a agressão. Queria poder contar que a Parada se mostrou, mais uma vez, como um espaço de resistência. Mas não foi isso que vi. O que vi foi um espetáculo que engoliu a dor de um jovem e seguiu rodando, como se a vida dele fosse um detalhe sem importância.

É duro escrever isso, mas é necessário. Porque só assim talvez a gente volte a lembrar: a Parada não nasceu para ser só festa. Nasceu porque nós apanhávamos nas ruas, porque éramos expulsos de casa, porque a polícia nos perseguia, porque a sociedade queria que nós não existíssemos. A Parada nasceu para dizer “basta”. Se a gente esquece disso, se a gente transforma a luta apenas em carnaval colorido, corremos o risco de deixar que as violências continuem acontecendo debaixo do nosso nariz.

No fim das contas, a pergunta que ficou martelando na minha cabeça é simples, mas incômoda: que movimento é esse que não consegue proteger os seus?

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